Foi esta frase que atravessou o meu espírito, olhando para este Papa que a doença não impediu o seu trabalho apostólico. Mesmo hospitalizado e, quando regressou à sua casa, manteve-se activo. Na Quinta-feira Santa, deste ano, não podendo celebrar a Ceia do Senhor numa prisão, como era seu hábito, fez questão de visitar a prisão Regina Coeli e, no Domingo de Páscoa, quis sentir o seu povo, tocar e deixar-se tocar pelas pessoas reunidas na Praça de São Pedro. Nessa mesma noite, serenamente, fez a passagem para o outro lado da Vida, a sua Páscoa.
Tenho esperança que ele continue a ser luz para a Igreja, para este nosso mundo tão desumano e que as portas e janelas abertas, no seu pontificado, não sejam fechadas para que o Vento, o Ruah, o Espírito de Deus, continue a arejar e renovar a Igreja Católica. Gastou a sua vida ao serviço da Alegria do Evangelho, ouvindo e sentindo o grito das pessoas que sofrem a guerra, a fome, a falta de educação e saúde, por causa de uma economia que mata, o grito do Planeta Terra, o grito das pessoas abusadas a vários níveis, das mulheres descriminadas na Igreja, do clericalismo, peste que atinge muitos dos hierarcas, mesmo no próprio Vaticano…
Cada um destes gritos, que ouviu e sentiu, não ficou no silêncio do seu coração. Não se cansou de os gritar bem alto sem eufemismos, mas com autoridade (diferente de poder), para que nenhum ficasse esquecido pelos poderes mesquinhos que governam este nosso mundo. Poderia recordar os seus gestos e palavras que os testemunham e lhe valeram muitos dissabores, mas que não o fizeram calar.
Sem menosprezar e esquecer nenhum deles, vou manifestar o eco que teve em mim a sua atitude perante as mulheres na Igreja. Desde o início do seu pontificado, mostrou que via as mulheres na Igreja de forma muito positiva, salientado a falta do génio feminino (pensamento, sensibilidade e acção das mulheres) nos processos decisórios da Igreja.
Ao convocar o Sínodo dos Bispos, em 2021, explicitou que desejava um sínodo de toda a Igreja: todo o povo de Deus (clérigos, mulheres e homens leigos) era chamado a entrar num debate aberto sobre os desafios que a Igreja enfrenta, promovendo a comunhão, a participação e a missão de todos e iniciando um processo que recupera a sinodalidade da própria Igreja.
Foi a primeira vez que as mulheres tiveram voz e direito a voto, num sínodo.
Entretanto, foi chamando várias mulheres para ocupar cargos importantes na Cúria Romana, impensáveis antes do seu pontificado. Assumiu o Documento final da 16ª Assembleia Sinodal (2024), como fazendo parte do Magistério ordinário do Sucessor de Pedro. Este Documento, nº 60, diz o seguinte: Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. No entanto, não abriu a possibilidade da ordenação diaconal às mulheres, o que provocou alguma frustração. Pelo contrário, eu fiquei contente porque, se nos admitisse ao diaconado, continuávamos descriminadas. A questão é mais funda. Implica uma outra compreensão eclesiológica que se impôs no Cristianismo sobretudo quando se tornou religião do Império Romano. Todas as pessoas, pelo baptismo, são sacerdotes, profetas e reis, em Cristo, único e grande sacerdote, como diz a carta aos Hebreus.
A missão da Igreja não é mais do que abrir espaços para o mistério de Deus, para o mistério do mundo, onde cada crente possa assumir a responsabilidade ética, na sociedade, na cidade, a partir da interpelação que lhe vem da vida de Jesus de Nazaré, vida em palavras e obras. Jesus não se identificou com nenhum grupo religioso – dos muitos existentes no Judaísmo do seu tempo – nem adoptou a concepção sacerdotal contemporânea, assim como não deixou nenhum modelo de organização ao seu discipulado, mas foi muito claro: tem de ser um grupo regido pelo serviço (Mt 20, 24-28 e paralelos) e pela igualdade: Todos vós sois irmãos (Mt 23, 2-11). Serviço, diaconia, que se devia traduzir no anúncio da Boa Nova e no dar a vida pela vida dos outros (gesto eucarístico).
A forma de o exercer, no concreto da Igreja, foi evoluindo ao longo dos tempos.
As primeiras comunidades levaram muito a sério esta recomendação. Era de tal modo importante para elas, essa igualdade no interior do grupo, que a confessavam no próprio acto do Baptismo: Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, pois todos vós sois um em Cristo (Gal 3,28). Todos vós sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa; dedicai-vos a um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes a vossa vida para a vida dos outros (cf 1Pd 2, 9.5). Esta igualdade proclamada era exigida no dia a dia da comunidade, visto que o baptismo insere a pessoa crente no Corpo de Cristo que é a Igreja, não se tratando, pois, do futuro escatológico ou do estado celeste. Sentiam-na quando experimentavam o poder criador do Espírito que lhes dava a vida em abundância (Jo 10,10); quando experimentavam a presença de Deus uns entre os outros e uns mediante os outros; quando experimentavam a presença de Cristo, reunindo-se em seu nome (Mt 18,20). O poder na Igreja é o poder de servir: aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo (Mt 20,26-27).
Ao longo dos tempos, o argumento apresentado com mais frequência para a descriminação das mulheres é o da semelhança natural. Dizem: só os homens podem ser ordenados porque, devido a essa sua semelhança natural, gozam da capacidade de uma identificação mais íntima com Cristo do que as mulheres. Dito em português popular: Cristo era homem, portanto, só os homens estão aptos a representar plenamente Cristo. A mulher, enquanto ser humano do sexo feminino, só tem acesso a Deus através do masculino crístico.
Aceitando este argumento, entramos num beco sem saída: sendo a masculinidade essencial para a acção crística, isto é, a acção em nome de Cristo, a mulher está excluída da esfera da salvação, porque a sexualidade feminina não é assumida pelo Verbo feito carne; se a masculinidade é constitutiva para a encarnação e a redenção, a humanidade feminina não é assumida e, por conseguinte, não é salva.
Não foi essa a prática de Jesus. Não as rejeitou. Os Evangelhos atestam que um grupo de mulheres acompanharam Jesus desde o início da sua pregação, sem lhes perguntar se tinham licença do pai, do marido ou do filho. Estas mulheres deixaram o recato do seu lar para andarem de terra em terra, seguindo e aprendendo os ensinamentos do Nazareno e nem na morte O abandonaram.
Todos os evangelistas testemunham que foram as mulheres a pressentir a ressurreição do Mestre, a ver o Crucificado, a perceber que a morte não teve poder sobre Ele. É o próprio Cristo ressuscitado que as envia a anunciar a Boa Nova da Ressurreição. São as apóstolas (que significa enviadas) do Cristo que venceu a morte. Aliás, Maria Madalena é chamada a Apóstola dos apóstolos, mesmo por Santo Agostinho, nada complacente para com as mulheres.
Mesmo não chegando a nenhuma decisão favorável à entrada das mulheres nos ministérios ordenados, o Papa Francisco abriu o debate alargado acerca deste assunto, o que é muito importante.
Estou muita grata pela sua forma de ser Papa. Sinto uma tristeza profunda por nunca ter tido a oportunidade de o abraçar.
Maria Julieta Mendes Dias, rscm
Artigo publicado no Jornal Público online (26.04.2025)
impresso (27.04.2025)