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OS SENTIDOS QUE DÃO SENTIDO

Cava dentro de ti mesmo profundamente, pois, se continuares a cavar, há uma fonte de bondade sempre pronta a fluir.
Marco Aurélio, Meditações, 7.59 (adap.)

Hoje poderíamos esperar que a bondade viesse ao nosso encontro — boas notícias, bom tempo, boa sorte. Ou poderíamos encontrá-la nós mesmos, dentro de nós. A bondade não é algo que vá ser entregue pelo correio. Tens de desenterrá-la da tua própria alma. Encontras a bondade dentro dos teus pensamentos e originas a bondade com as tuas ações.”
Excerto de Diário Estoico:  Ryan Holiday: 366 Lições Sobre Sabedoria, Perseverança e a Arte de Viver (adaptado)

Hoje, os dias correm apressados. As horas apagam-se implacáveis. As coreografias a que a agenda nos obriga são entorpecedoras, anestesiantes…. Parecem traçadas para nos entreter, tornando-nos quase espectadores de nós próprios. Parecem desenhadas para, organizadamente, nos tornar submissos ao tempo.

A agenda é nossa mas, aparentemente, nós somos dela... Por isso, impõe-se parar; impõe-se distanciar das engrenagens que nos prendem num adormecimento sensorial do qual precisamos despertar. Deste modo, faz-me sentido dar Sentido(s) à bondade dos nossos dias...

O Sabor

Chega o tempo de abrandar e sentar.

Mesmo que se tenha vindo a desfocar ou menosprezar, a arte de saborear é uma aprendizagem indispensável à vida. Quem não aprecia os deliciosos, fartos e longos manjares de domingo?

A bondade do pão amassado pelas mãos do avô; da mãe ao preparar as carnes no dia anterior; do pai com o contexto da confraternização.... A boa comida e o bom vinho requerem preparação, dedicação, atenção àquele que se convida para, constituindo-se uma mesa de bondade, se viver um saborear recíproco. A generosidade de bem servir para bem saborear faz-se da bondade e sabe a bondade.

Cristo, ensinou-nos que quem não sabe parar, não sabe viver. E foi precisamente à volta da mesa que, com bondade, deu o tempo necessário à escuta, à atenção e à surpresa. Foi à volta da mesa que Jesus, junto dos publicanos, de Zaqueu, ..., deu um sabor mais intenso e completo a cada refeição, que se quer sempre mais humana, mais amadurecida e expressiva. Ele fez-se Corpo e história no Sentido mais comum dos dias. Não para nos explicar, mas para nos implicar.

O perfume

“Ofereceram-lhe lá um jantar “(Jo12,2) e Maria de Betânia ungiu os pés de Jesus com "uma libra de perfume de nardo puro, de grande valor" (Jo 12,3), e "a casa encheu-se com a fragrância do perfume". Um gesto de bondade que se faz perfume em resposta e gratidão Àquele que é “o bom perfume” (2 Cor 2, 14-15) exalado sobre a humanidade.

Faz-me bem pensar na imagem do perfume como um símbolo da força do invisível. A bondade invisível que apenas se sente, pressente-se e perfuma, desta forma, o (cor)ação.

“Com as narinas a sangrar um perfume” (Daniel Faria) intenso, somos despertados para um amor imenso que enche o mundo de comunhão, de paixão, de bondade.

A escuta

A hospitalidade da escuta implica exercitação e treino. Numa altura em que os dias nos fogem e as palavras soam ruidosa e copiosamente, torna-se desafiante aceitar que a verdadeira escuta exige que nos tornemos surdos. De facto, só quando deixamos as urgências hodiernas, que nos atordoam, nos dominam e nos privam do essencial, encontramo-nos. E aqui também reside a bondade: nesta forma afetuosa de conduzir a realidade, inesperadamente, ouvimos vozes melodiosas que arrepiam a pele, histórias de (re)encontros, confidências banhadas de lágrimas, pautas e letras que outros cantam mas que, naquele instante, se tornam nossas, olhares que falam, pequenas verdades que se transformam em grandes lições, gargalhadas que vêm de dentro, conversas que não ocupam, mas que nos habitam.... escutam-se murmúrios e silêncios, perguntas e ansiedades. Ouvem-se vozes que desesperadas perguntam: “Onde estás?”. Escutam-se sussurros que respondem: “Eis-me aqui”.

Não podemos, por isso, seja em que circunstância for, excluir a importância da disciplina da atenção, a arte da escuta e a ciência da ressonância daqueles que se cruzam connosco. «Quem tem ouvidos, escute!».

Mark Twain diz que “a bondade é o idioma que o surdo ouve”: Haverá linguagem mais universal do que aquela que passa “dos ouvidos ao coração e do coração passa às mãos?” (Papa Francisco).

O Toque

Nas diversas experiências de bondade que vivemos, não podemos negligenciar o modo afetivo de tocar e sermos tocados.

Ao deixarmo-nos entrar no laboratório da bondade fazemos a experiência tocante de um Deus que nos surpreende, desconcerta os nossos esquemas, baralha os nossos planos, relativiza as nossas certezas… Deixarmo-nos tocar pela bondade, significa deixarmo-nos transformar, passando a viver num encontro contínuo. Só aí tocamos o coração de alguém... num gesto simples como um aperto de mão, um abraço apertado que acolhe a dor, na mão segura que se estende para ajudar alguém.

Jesus " estendeu a mão e tocou-o '" (Mt 8,3). Um toque que cura, que restaura a dignidade e faz sentir à pessoa a proximidade transformadora do Amor. A Palavra e o toque de Deus é efetivamente afetivo. Comove. E comovendo-nos, move-nos. Faz-nos ser movimento de encontro para os outros na sua bondade, verdade, diferença e comum desejo de viver. Assumimos, portanto, que a vida é tátil e a bondade que trazemos nas mãos é o que nos faz ser, sendo “próximos”.

Os olhos de quem (se) vê

Miguel Ângelo dizia: “Quando eu olho para uma pedra, para um mármore, eu não vejo um mármore tosco, primitivo, em bruto. Quando eu olho vejo já a escultura, vejo já a obra-prima. E o que eu faço é libertar a forma daquele mármore bruto.”

O olhar para dentro inaugura o diálogo entre o que somos e o que desejamos ser; entre aquilo que o outro é e poderá ser. Mas quando nos desafiamos para um olhar que vai além do nós, abrimos a porta a um olhar de bênção. Longe de julgamentos, pesos ou busca de imperfeições.

O olhar para além é bondade a que o amor dá forma. E passamos realmente a ver... E veremos o amor que brilha nos olhos de um amigo, no sorriso espontâneo oferecido a um estranho, na lágrima empática por uma dor que (não) é nossa. Ver além é bondade que nos faz perceber o sonho e curar a ferida. É ser luz acesa na janela, orientando quem chega ou quem se perde, é ser gesto nas mãos que traduzem paciência....

É ver que a luz das manhãs
não é apenas luz
mas revelação...
de um pedaço de eternidade.

Daniela Rodrigues
Professora