Durante muitos anos, defendemos de forma mais ou menos explicita, a importância das matemáticas, das ciências, da economia ou da gestão. Ainda me recordo de um almoço em família, em que um primo afastado, disse em voz alta, para que todos ouvissem, “letras são tretas”. Confesso que me senti corar de vergonha, mas não fui capaz de responder. Hoje não hesitaria em pedir explicações, mesmo que se iniciasse uma discussão familiar. As discussões são necessárias e devem ser construtivas, mas para que tal aconteça, precisamos de estruturar o nosso pensamento. Naquele dia, ainda a meio do meu curso, venceu a timidez, misturada com a vergonha e uma dose de zanga interior, que me fez não esquecer, até hoje, aquele almoço.
O vazio
Esta convicção de que os nossos filhos têm de ser gestores, economistas, engenheiros, ou outras profissões decorrentes destas realidades (com exceção talvez do Direito, necessário a todas elas), provocou um vazio na capacidade de conhecer o mundo, de saber relacionar acontecimentos ou desenvolver o espírito crítico que permite fazer análises e escolhas. Ao mesmo tempo, fomos reduzindo a dimensão da leitura e da escrita de uma forma quase assustadora.
E não falo da leitura de longos e densos livros que serão sempre verdadeiras obras de arte, pelo efeito que a sua leitura provocou e provoca ao longo de gerações; nem falo da escrita, que é, na maior parte dos casos, algo que se exercita, que se treina, que implica esforço e trabalho.
Falo de um maioritário desinteresse pela leitura, estejamos a falar de livros ou de breves artigos de opinião. Mesmo os livros que se mantêm de leitura obrigatória nas nossas escolas, já são substituídos por finas edições, com resumos e as possíveis perguntas e respostas que se podem fazer sobre a obra e o seu autor. São estes os livros que muitos pais compram para facilitar a vida aos seus filhos, num teste ou num exame.
Falo da forma como comunicamos entre nós, com mensagens cada vez mais curtas, tecladas em ecrãs, escritas com abreviaturas e bonecos que alguém desenhou. As cartas que alimentaram relações e proximidades durante séculos, parecem objetos pré-históricos e quando é imprescindível escrever uma simples carta de apresentação, é preciso recorrer à internet, para sabermos como o devemos fazer.
Para além da escrita e da leitura, fomos abandonando o gosto pela história, pela filosofia, pela cultura geral. Só nos valem os programas da televisão, de perguntas e respostas, denunciadores desta mesma realidade, ainda que dirigidos a pessoas específicas, que nos parecem um pouco bizarras, pelos interesses que revelam; e quero acreditar que não será apenas o dinheiro que as move, neste chamado conhecimento enciclopédico, outra palavra que deixou de ter qualquer relevância na vida dos jovens.
Especificando a realidade dos adolescentes, quantos de nós não rotulamos de “cromos” os raros jovens que escapam a todo este panorama que nos rodeia? Ou então, enquanto pais e educadores, tentamos contrariar o que nos parece ser, uma via aberta para um futuro sem futuro? Perante a preocupação de um emprego que permita o melhor nível de vida possível, justificamos a menoridade da aprendizagem da história, da filosofia ou o estudo da língua.
Mas começam a soar as campainhas de alerta… não há professores de história; não há professores de filosofia; os alunos chegam às faculdades e não sabem escrever ou não entendem as perguntas de exames de física, de ciências ou de economia. Não se interessam pela política nacional e internacional, mas logo que conseguem, querem viajar para destinos longínquos e exóticos e encher as suas redes de fotografias que provem a sua condição de cidadãos do mundo.
Os erros
Precisamos de reconhecer os erros da educação, estejamos a falar do ensino ou da vida familiar e precisamos de dar o devido valor a todas as dimensões da educação. Chegámos a verdadeiros desertos de cidadania, porque não soubemos alimentar o pensamento e o coração dos jovens, que abandonam os estudos ou então que estudam, desconhecendo o conceito do bem comum, assim como dos adultos, que hoje são pais, educadores, decisores políticos, sociais e culturais. Destas três realidades, a mais complexa é, segundo a minha modesta opinião a que se refere à cultura. A nossa identidade de portuguesas e portugueses, nasce da nossa língua, da nossa história, das nossas tradições, dos nossos artistas e pensadores. A nossa identidade está alicerçada numa matriz cristã, num espírito missionário, numa capacidade fora do comum de nos aculturarmos, sem perdermos as nossas raízes.
Tudo o resto é igualmente fundamental porque nos alimenta o corpo. Mas de que serve termos saúde, dinheiro, casa e comida – sendo que são cada vez mais os que não têm sequer esta dimensão de vivência e sobrevivência – se não soubermos a nossa história, a nossa cultura enquanto povo e nação? De que nos serve ter comida no prato, viajar todos os anos, se não conseguirmos ler e escrever mais do que aquilo que as redes sociais nos oferecem e pedem?...
A urgência
É urgente trazer para as salas de aula, para as conversas entre amigos e família, para o mundo da educação e da comunicação, esta inquietação. Colocarmos perguntas aos mais novos e aos mais velhos. Se o quisermos fazer, de forma determinada e corajosa, tenho a certeza de que surgirão respostas novas e arrojadas.
Existimos como um dos países mais antigos do mundo, a caminhar para os 900 anos de história. O Império é agora uma pequena parte da Península Ibérica, mantendo uma extensa dimensão de costa. Estou convicta de que somos capazes de muito mais do que imaginamos.
Isabel Figueiredo
Diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais