Para cada tempo ou época histórica fazemos leituras, avaliações, exercícios críticos. Olhando para trás, sabemos que existiram tempos de crescimento da Igreja e outros de contração; apercebemo-nos que, como comunidade crente, já vivemos períodos de fervor e testemunho audaz e outros de comodismo e preguiça. Bem sei que numa “organização” tão vasta, complexa e diferenciada como a Igreja, as generalizações são sempre temerárias e perigosas: quando dizemos “A Igreja está em crise”, do que falamos? Do Vaticano? Dos padres? Da Igreja na Europa? Há tanto heroísmo e virtude que passam sob o nosso “radar” que estas afirmações “totalizantes” têm de ser usadas com parcimónia.
Ainda assim, repito, o que é que podemos não estar a ver?
De uma forma ou doutra, não devemos renunciar a fazer uma reflexão e um juízo, pessoal e comunitário, sobre a nossa fidelidade, hoje, ao evangelho de Jesus. Deveremos sentir-nos tranquilos e seguros relativamente àquilo que somos e fazemos? É que Jesus “sacudia” frequentemente os seus ouvintes, sobretudo os “detentores” do poder religioso, esses justos: cuidado, afirmava, com os que não entram nem deixam entrar; sejam vocês mesmos sal e luz, caso contrário, para mais não prestam senão para serem pisados pelos homens. É fácil, quando avaliamos outros momentos históricos, dentro ou fora do cristianismo, fazermos um juízo objetivo e contundente: como foi possível que isto ou aquilo acontecesse? Rapidamente e à luz dos nossos critérios e valores ajuizamos e validamos (ou não).
Quando reflito, como cristão, o tempo que me é dado viver, dou comigo a pensar muitas vezes: poderei eu (nós como comunidade) não estar a ver algo de fundamentalmente errado ou infiel ao evangelho, de tal modo que outros dirão um dia no futuro: como é possível que naquele tempo A ou B acontecesse? É isso que fazemos quanto ao passado: como é possível a Igreja ter feito ou defendido ou proibido isto ou aquilo? É tentadora (e muito tranquilizadora) a presunção de que sou mais ou menos alinhado como o que é esperado de mim hoje, aqui e agora e, assim, andar mais ou menos tranquilo. Será assim mesmo? Haverá algo de fundamentalmente errado que posso (podemos) não estar a ver? Como podemos responder à censura de Jesus aos seus contemporâneos quando diz: vocês sabem ver se vem bom ou mau tempo, como é que não conseguem ler os sinais dos tempos?
E é isto mesmo: o que podemos não estar a ver do que está debaixo do nosso nariz?
O Papa Francisco, como o nosso guia e pastor, aquele que nos confirmou na fé e nos deu um sentido de missão e de urgência no anúncio da boa notícia, não deixou de nos inquietar. Tenho para mim que o “vinho novo” que trouxe era demasiadamente forte para os “odres velhos” que somos nós, os nossos esquemas mentais, as nossas estruturas, planos e organizações. Só o tempo mostrará como Francisco estava bem à frente da nossa realidade eclesial. Não poucas vezes lhe reconheci a coragem pela forma como verberou a “Hierarquia”, mas esquecia-me que também falava para mim e me desafiava. Parece que éramos “nós contra eles” – por exemplo os que queríamos a mudança contra os conservadores - quando, na realidade, (como disse na Evangelii Gaudium) do que se trata é de regressarmos, todos, à beleza e à frescura primeira do Evangelho. Achamos bela a imagem da Igreja como “tenda de campanha” onde se cuidam dos feridos, mas quantos de nós estamos ainda “presos” na sacristia ou centrados com as rúbricas ou a moral quando o que muitas pessoas precisam hoje é de cura para as suas doenças do espírito, da alma, do coração? O que é que podemos não estar a ver?
Francisco definia-se a si mesmo como um “iniciador de processos”. Rezamos pelo conclave e pelo novo papa, mas sobretudo por todos nós batizados, pedindo o fogo e o grande incêndio para as nossas vidas e as nossas comunidades.
Francisco tinha esse fogo, essa urgência, esse desassombro.
Quero muito no próximo dia 12 de maio participar na oração do terço em Fátima e na procissão das velas. Na última vez que lá estive, à minha frente um senhor de idade rezou todo o terço de joelhos. Que dignidade e que devoção ali estavam! É lá que vou beber a fé, a esperança e o amor: nesses milhares de peregrinos de lágrimas nos olhos, pedindo coragem para as suas lutas, um familiar doente, uma situação de sofrimento insuportável. Ali, sinto-me, de forma particularmente intensa (como sempre em Taizé ou na Jornada Mundial da Juventude), membro desta comunidade espantosa, terrestre e celeste, que é a Igreja. E lá, na terra de Nossa Senhora, eu e tantos imploraremos o fogo novo, o incêndio, a incandescência do amor para a Igreja e para o mundo. Como narra o livro do Apocalipse, pediremos o colírio para os nossos olhos verem e que o Médico Divino sempre com delicadeza nos dispensa.
Não tenhamos medo, pois, de acender as nossas velas e de as erguer bem alto na noite do mundo. Como alguém disse, Deus vai à frente do nosso medo! O Ressuscitado, estandarte levantado, abre o cortejo dos libertos, de todos os que avançamos pela sede e pelo amor.
Pedro Martins
Professor