A par de outras alíneas, estipula um dicionário da língua portuguesa, num esforço de síntese e depuramento, que o termo “liberdade” se trata de um “nome feminino” passível de ser definido como “condição do ser que pode agir consoante as leis da sua natureza” ou “direito que qualquer cidadão tem de agir sem coerção ou impedimento, segundo a sua vontade, desde que dentro dos limites da lei”. Penetrando o léxico português por meio do vocábulo latino libertāte, o termo foi fazendo caminho num vasto rol de expressões em que este surge mediado pela preposição “de” - “liberdade de culto”, “liberdade de associação”, “liberdade de manifestação”, “liberdade de expressão”, “liberdade de imprensa” - que apontam para formas de organização e posicionamento colectivos e para direitos (teoricamente) tornados inegociáveis. Sem qualquer demérito ou desprimor para com o sempre necessário labor dicionarístico, prefiro, contudo, pensar a “liberdade” a partir de outros dois possíveis eixos: um é sugerido por um lapidar refrão ecoado por tantas vozes desde o seu primeiro pronunciamento; o outro é bem mais antigo e pode ser descoberto num dos fragmentos neo-testamentários mais amiúde reiterados.
O dia inicial inteiro e limpo
O “dia inicial inteiro e limpo” que viria a pôr cobro à mais longa ditadura europeia espelha-se também no frutífero repertório musical àquele associado e que constitui um verdadeiro património interventivo. De 1974 data o fundamental vigésimo quinto dia de Abril, mas também a canção intitulada “Liberdade”, assinada por Sérgio Godinho, um dos que melhor tem sabido cantar o país. Porventura mais do que a mera celebração de uma possibilidade aberta pelos “Cravos”, a verdadeira força do poema reside nas exigências elencadas para que a liberdade seja “a sério”: “paz”, “pão”, “habitação”, “saúde”, “educação”. É que dificilmente haverá liberdade - ou, pelo menos, uma que seja efectivamente digna de tal nome - fora da concretização da materialidade essencial à sobrevivência e realização plena dos povos e dos indivíduos. Três anos antes da eclosão da democracia em Portugal, Paulo VI aludia, na sua mensagem por ocasião do Dia Mundial das Missões, à “objecção” repetida por “pessoas bem intencionadas” relativa ao “sentido [de] anunciar aos famintos, aos necessitados, às vítimas de opressões e de injustiças, uma felicidade futura”. Semelhante interrogação poderia hoje ser desdobrada em tantas outras: qual o horizonte de “liberdade” para quem (sobre)vive em pleno genocídio de Gaza? É-se “livre” sem se fazer face às suas necessidades nutritivas? Haverá campo semântico para “liberdade” sem uma casa digna, acesso a cuidados de saúde adequados ou sendo impedido/a de estudar e aprender? Se não se atentar nem enraizar nas feridas e dores do mundo, a busca pela liberdade limita-se a um postulado estéril de efectivação, maculado por um desligamento da realidade concreta. “Liberdade” é, pois, substantivo que se realiza e concretiza, e, a partir daí, palavra que “liberta”.
Uterina à verdade
É por “libertar” que a “liberdade” é uterina à “verdade”, como alvitrado no sempre actual(izado) versículo do Evangelho de João: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32). É do conhecimento da “verdade” que brota e germina a “liberdade”, encontrando-se as duas inextricavelmente ligadas. Satisfeitas as necessidades materiais, damo-nos conta de que estas não nos bastam nem plenamente se experimentam se não forem acompanhadas do conhecimento de quem somos (acorre ao pensamento o início da canção que primeiro assinalou a chegada de “Abril” - “Quis saber quem sou”) e, mais ainda, da possibilidade de o sermos. É ao conhecermo-nos que somos livres—não “apesar” do que somos, mas precisamente “com” o que somos. Não uns/mas mais do que outros/as, não uns/as em vez dos/as outros/as, mas “todos, todos, todos” como ternurenta, mas vigorosamente incitado por Francisco, de quem recentemente nos despedimos e cujo pontificado ficou também marcado por um profundo exercício de liberdade. A “liberdade” é também a nossa “casa comum” que urge preservar e defender de forma intransigente.
Libertação de todos, todos, todos.
Parece-me portanto que a “liberdade” só pode ser levada a “sério” se visar a “libertação” de “todos, todos, todos” os sujeitos individuais e colectivos, num delicado balanço entre concretização material e busca pessoal e espiritual. É-se livre conhecendo-se e conhecendo-se é-se e realiza-se livremente. Simultâneo ponto de partida e horizonte último, a “liberdade” é o terreno onde nos podemos realizar e conhecer, de mãos e braços dados até porque como canta Aline Frazão “Se a minha liberdade não existe / A tua é só aparência”. A liberdade “a sério” não é aquela que apenas vagamente nos aponta um caminho difuso, mesmo que bem intencionado. A liberdade “a sério” é aquela que “liberta” concreta e realmente — que te, me, nos “liberta”.
Guilherme Borges Pires
Egiptólogo