O tempo dilata, as reuniões de trabalho dão lugar aos reencontros entre amigos, as tarefas por terminar passam a malas de viagem por preparar. Todos antecipam as férias – os pais desejosos de escapar à maratona dos dias, os filhos na ânsia de reverem amigos de verão, os avós esperançosos de mais tempo na companhia da prole. Em conjunto, preparam-se para a época do ano que mais liberdade lhes dá, onde os vários projetos com que sonham ao logo do ano podem, finalmente, concretizar-se. Mas, em cada dia, reencontram-se num espaço que é comum, num momento onde revisitam o passado, apreciam o presente e preparam o futuro – a mesa.
A mesa transcende o tempo e o espaço
Na praia, improvisa-se com uma tábua e não é mais do que um poiso temporário para os benjamins interrompidos nos seus jogos de fantasia. No quintal, em carvalho robusto, faz jus à solenidade dos grandes e longos banquetes onde velhos e novos se esforçam por falar uma língua comum. No café, como ponto de encontro das aldeias que nesta época se revestem de vida e que carregam as baterias dos solitários, muitas vezes idosos, para mais um ano de espera.
A mesa surge, assim, como o espaço – mais do que físico, comunitário – em torno do qual a família gravita. Onde se descobre a família, nas histórias do avô tímido que, satisfeito com o manjar, inebriado pelos olhares saciados, mas sedentos de algo mais, da audiência, se deixa levar pela corrente das memórias de um passado longínquo. Onde se constrói família, nas conversas com o primo retornado que, durante um mês, participa nos rituais da constelação familiar com a gula de quem sabe que apenas tem esse tempo para ser e se fazer presente. Onde se projeta a família, nos conselhos do tio que os sobrinhos têm como herói, que aparenta levar a vida descontraída e repleta de encanto que os petizes idealizam.
É no espaço da mesa que o mundo, aquele mundo tão pequeno, tão nosso, se expande e se duplica, até se transformar em todo o universo. Fora ficam a cidade e o betão, o escritório na zona nobre da cidade, a escola e as suas regras. É no tempo da mesa, tão anacrónico com o ritmo dos outros onze meses, que se rouba o tempo ao tempo, até este parar. Onde o hoje se faz ontem e é igual ao amanhã – e onde isso basta.
A mesa sobreviveu à evolução da humanidade
A mesa sobreviveu à evolução da humanidade, à febre tecnológica e do imediatismo (embora seja comummente capturada e partilhada nas redes sociais), e já no passado distante tinha um papel. As comunidades reuniam-se para debaterem a sua sobrevivência, difundia-se a sua identidade e construíam-se os valores comuns. Os anciãos ensinavam os novatos, introduziam-nos à arte da caça, da divinação e da tradição. As matriarcas asseguravam que a mesa era lar, garantiam o restabelecimento daqueles que partiam em expedição e davam-lhe significado.
Hoje, ainda é assim, ainda é na mesa que encontramos aquilo que faz de nós humanos e que nos distingue de outras espécies – o ato radical de nos darmos e de recebermos, de escutarmos e aprendermos, de transmitirmos aos outros os motivos pelos quais se dá cada passo seguinte, pelos quais se caminha em direção a um novo dia. Nas receitas a que a avó se dedica na placidez dos dias e que transmite pacientemente à descendência, nos olhares furtivos que os progenitores deitam sobre os que estão a seu cargo e através dos quais transmitem o essencial da etiqueta, nos risos partilhados pelos presentes que acompanham a corrida desenfreada do cão que quer partilhar da humanidade do momento.
A mesa é cultura, que se constrói numa troca que, podendo acontecer num qualquer outro momento, num qualquer outro lugar, apenas na mesa atinge o seu zénite. Porque a mesa é vulnerabilidade, um local onde, para satisfazer uma necessidade das mais básicas, se satisfazem outras mais, elevadas. E é vulnerabilidade também porque, abertos aos outros, expomos o que de mais privado temos, como os antigos se apresentavam ao potencial ataque de predadores. Ora, esta vulnerabilidade, como tantas outras lições e experiências do ser humano, espelha-se, naturalmente, na forma como a mesa é representada nas Escrituras.
Vemos em Jesus um mestre de cerimónias capaz de tornar qualquer mesa fortuita
Em Caná, inicia a sua vida pública e garante que o vinho, símbolo da solenidade e da festa da ocasião, não finda. Em vários momentos, transforma a mesa num espaço de redenção, reunindo-se com puros e pecadores, com humilhados e com ofendidos, para, na comunhão da refeição, mostrar ao Homem que é irmandade, que no diálogo nos fazemos iguais, escolhidos e chamados por Deus. Mais, o apogeu do seu ministério tem lugar a uma mesa – a da Última Ceia. O culminar da intimidade com os discípulos, as despedidas que trava com os seus mais fiéis seguidores, ocorrem à refeição, onde a gratidão por tudo o que foi e a esperança por tudo o que será se encontram representados no alimento, garante da continuidade da missão apostólica que nos é confiada.
Que nas mesas deste verão (e dos que se sucederão) saibamos respeitar este espaço, fazendo para que os momentos sejam abundantes, como os Evangelhos nos ensinam – abundantes em encontro, em partilha e em comunhão!
Teresa Pedroso