Mas não, não vou falar de Amor, daquele sentimento tão ansiado e desejado, quanto temido. Do transbordar de emoções no coração de qualquer pai ou qualquer mãe quando se anuncia a chegada de um filho, ainda antes do seu nascimento; ou do palpitar do coração de qualquer recém nascido quando ouve a voz ou vê o sorriso do pai ou da mãe; ou mesmo do amor-amizade para a vida dos primeiros “melhores amigos” da escola ou do encantamento e das borboletas no estômago na adolescência quando descobrimos que alguém nos é particularmente especial; nem da chama ardente do amor conjugal que gera novas dinâmicas, nova vida e companheirismo; nem mesmo daquele sentimento de zelo, protecção e cuidado desvelado para com os nossos pais e avós, na idade ou na doença, em que aprendemos a inverter papéis e a cuidar de quem sempre cuidou de nós.
Esse Amor transformador convoca-nos inevitavelmente para a acção, impele-nos para a iniciativa prática, no mesmo sentido, de valores e padrões amorosos em que celebramos quem somos e quem o outro realmente é e traz à tona o melhor de cada um.
Hoje queria falar de outra forma de Amor.
Não do Amor sentimento, mas sim do Amor Virtude. Do Amor infinito, universal, que nada espera em troca e que provoca a nossa responsabilidade. Do Amor não como vínculo pessoal, mas como responsabilidade social e solidariedade global. Do Amor que não nasce de geração espontânea, mas que exige que nos conquistemos a nós próprios, superemos e saiamos de nós e da nossa zona de conforto.
No dia 5 de Setembro, data em que se celebra o aniversário da partida para o Céu da Madre Teresa de Calcutá e se comemora o Dia Internacional da Caridade, a minha intenção era precisamente falar de Caridade.
Caridade, etimologicamente proveniente da expressão latina carus (querido/amado), é entendida como a mais excelente das virtudes, que compreende não apenas o Amor do Homem a Deus, como também ao próximo, entendido este como todas as pessoas, indistintamente e sem preconceitos geográficos, sociais, ideológicos ou de qualquer outra índole. Caridade essa que nada tem a ver com aquela noção redutora (caridadezinha), traduzida numa prática assistencialista, movida por paternalismos e/ou objectivos de visibilidade que, as mais das vezes, cria relações de dependência. Não! Já dizia São Paulo, a Caridade “não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses..”
Se o Amor sentimento nos convoca para a acção e todos nós, ao revisitar memórias, conseguimos deixar escapar um sorriso por atos, mais ou menos impensáveis e improváveis, que fizemos por Amor, já o Amor Virtude – a Caridade -, ao invés e em consciência, confronta-nos com todas as nossas omissões. Com tudo o que poderíamos ter feito em prol da dignidade dos outros e deixámos por fazer, ancorados ou respaldados nas nossas rotinas e afazeres pessoais, familiares ou profissionais.
Inquietude. É isso que brota do meu íntimo cada vez que me consciencializo que estou aquém do Amor que poderia dar… Mas, como dizia o Papa Francisco aos Jovens nas JMJ 2023, em Lisboa, “a inquietude é o melhor remédio contra a habituação, aquela normalidade rasteira que anestesia a alma”!
Um verdadeiro murro no estômago. É isso que sentimos quando lemos as palavras do Papa Francisco na encíclica Laudato Si ou Fratelli Tutti: “só o homem que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai”. O apelo é claro como a água: cuidar dos mais frágeis, olhando o seu rosto, sentindo a sua proximidade e procurando a sua promoção, numa atitude maravilhosamente humana.
Pertencemos todos à mesma humanidade e no entanto…reticências…muitas reticências…reina uma ilusão enganadora de omnipotência de alguns, uma indiferença acomodada de outros, em que o caminho parece ser o isolamento e o fechamento até à meta do nosso bem-estar. Esquecemo-nos, inclusive, que uma não tão longínqua pandemia nos acordou para a realidade de que ninguém se salva sozinho e estamos todos no mesmo barco. Socorrendo-me das palavras do Papa Francisco, “alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza e acabamos por comer distracção, fechamento e solidão.”
Por isso, urge sonhar e viver a Caridade!
Urge que vivamos não apenas focados no nosso Eu e no nosso bem estar pessoal (ou dos que nos são próximos), urge que os restantes não sejam apenas “outros”, de quem nos desinteressamos, e urge que consigamos construir um Nós.
Do que precisamos então? Cada um saberá de si. Pessoalmente, direi que nos falta o mesmo dinamismo que mantém acesas as nossas relações. Dinamismo de abertura e acolhimento para com os outros, principalmente os mais carentes de dignidade, auto-estima e apoio, reconhecendo-os como iguais, como preciosos, ampliando-os, semeando esperança nas suas vidas. Sem imposições, sem domínios, de igual para igual.
Foi assim que surgiu o projecto Ut Vitam – A CASA. Esta “Caridade em Acção” foi sonhada pela Província Portuguesa do Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria. Um sonho que nasceu do discernimento e escuta aos apelos e necessidades da nossa sociedade, tão ao jeito e à imagem dos ensinamentos e preocupações do seu Fundador – o Pe. Jean Gailhac -, e que as Irmãs tão bem souberam escutar e tornar realidade.
Ut Vitam – A CASA já não é um sonho, nem mesmo uma utopia.
É real, está pronta para a sua missão a partir de Setembro de 2025 e pretende ser:
- um lugar de acolhimento – não assistencial nem residencial – para todos os desfavorecidos ou em situação de vulnerabilidade, e suas famílias, onde serão conhecidos pelo rosto, tratados pelo nome, onde poderão apenas estar e conversar, mas também comunicar com a família e até aprender português;
- um lugar onde poderão tomar banho, assegurar os cuidados primários de higiene e saúde, lavar e engomar a sua roupa, para que nunca lhes falte dignidade e mantenham ou recuperem a sua auto-estima;
- um lugar de esclarecimento e entreajuda, onde poderão conhecer os seus direitos e deveres, ser encaminhados para respostas existentes na cidade de Lisboa e ver os seus filhos acompanhados no estudo e na língua;
- um lugar de espirito aberto, respeito e tolerância onde cada um se poderá recolher, estar com o seu Deus e ver a sua religião, cultura e valores respeitados.
Em suma: pretende-se capacitar, dar ferramentas e instrumentos para uma verdadeira e genuína integração social e profissional, assim tentando evitar o caminho da mendicidade e delinquência.
Abracei este projecto desde o primeiro minuto e ainda sem o conhecer ao pormenor. Não poderia deixar de o fazer! Ele foi a resposta para a minha inquietude: se a Caridade – o verdadeiro Amor-Virtude/Amor-Fermento – põe a nu as nossas omissões, o convite para a acção era irrecusável!
Hoje, “vestindo a camisola” deste projecto, é a minha vez de vos dirigir igual convite a sonhar connosco este projecto! A sonhar connosco a Caridade e a pô-la em prática. A sonhar e viver connosco um coração aberto, um coração que é Casa para todos e onde todos se sentem em Casa. Para que todos tenham a vida a que têm direito, com a dignidade que assiste a qualquer ser humano. Mas mais do que um convite a sonhar, é um convite a viver o sonho e servir connosco neste projecto de todos e para todos.
Termino com um excerto da Oração ao Criador: “ Senhor e Pai da Humanidade, que criaste todos os seres humanos com a mesma dignidade, infundi nos nossos corações um espírito de irmãos. Inspirai-nos um sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz (…)”.
Na construção deste sonho contamos com todos, todos, todos!
Teresa Garcia
Coordenadora de UT VITAM | A CASA