Foi entre os escombros de uma Europa destruída, vítima de um conflito de escala até então inigualável, com o sinistro balanço de 20 milhões de mortos, que a Humanidade se viu como vítima de si própria - do seu orgulho, da sua ganância. Foi nesse contexto que se criou, pelas mãos do presidente norte-americano Woodrow Wilson, a Sociedade das Nações. Este seria um projeto ambicioso, mas com nobres ideais, que pretendia, tal como nós hoje, almejar um mundo melhor: uma cooperação saudável entre os países, num espírito de ajuda, respeito e solidariedade, e, sobretudo, manter a paz mundial. Contudo, como qualquer edifício construído sobre bases frágeis, em apenas vinte anos esta organização perdeu o seu propósito e significado com o surgimento de um segundo conflito à escala mundial.
1945, Nova Iorque, EUA.
O mundo precisava novamente de esperança, de sarar as suas feridas e, conscientes do fracasso da Sociedade das Nações, construiu-se um novo projeto sobre novas bases: a Organização das Nações Unidas. Esta representaria uma riqueza na sua constituição universal e esperava-se que fosse, ao mesmo tempo, um novo farol para a Humanidade, capaz de promover o diálogo, a dignidade dos direitos humanos e a procura do bem comum, ancorada em valores cristãos como a fraternidade, a justiça e o respeito pelo outro. A encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, reforça plenamente esta ideia ao apelar a uma “amizade social” capaz de construir pontes e não muros entre os países.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada no longínquo ano de 1948, continua a ser, ainda hoje, uma referência fundamental na defesa da dignidade humana.
Foi graças à Carta das Nações Unidas, documento fundador da organização, que cem dos seus Estados-membros puderam alcançar a autodeterminação e a independência, como no caso de Timor-Leste. As missões de paz da ONU, que já atuaram em mais de 70 países, evitam permanentemente a violação dos direitos humanos e permanecem ativas em onze países.
A criação do Tribunal Penal Internacional, em Haia, continua a ser um instrumento essencial para julgar crimes de genocídio, crimes de guerra e outros crimes contra a Humanidade. As agências da ONU, como a OMS e a UNICEF, continuam a salvar milhões de vidas em missões de combate às epidemias, à fome e à pobreza extrema.
A ONU contribuiu decisivamente para a erradicação de doenças como a varíola, combateu a poliomielite, reduziu a mortalidade infantil e enfrentou pandemias como o HIV/SIDA, Ébola e COVID-19. Todos os anos, a ONU assiste mais de 100 milhões de pessoas em crises humanitárias, incluindo refugiados, vítimas de desastres naturais e de conflitos armados.
Com os seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a ONU é hoje uma das maiores plataformas globais para uma construção coletiva que permitiu, apesar das dificuldades, avanços significativos na redução da pobreza extrema, na expansão da educação básica, na igualdade de género, na defesa gradual da energia limpa e na ação climática.
2025.
Passados 80 anos da sua fundação, novos desafios se colocam ao mundo e à ONU: as alterações climáticas, as migrações em massa, a questão da desinformação, o avanço da inteligência artificial e a crescente polarização política. As fragilidades da ONU estão cada vez mais expostas. O corte de verbas tem comprometido a eficácia dos programas humanitários e de desenvolvimento. Há uma necessidade urgente de reforma estrutural, uma vez que o Conselho de Segurança reflete o mundo de 1945, e não o atual, e o seu poder de veto tem impedido ações efetivas de combate a problemas contemporâneos, como o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, entre outros.
Bússola Moral
Como afirmou o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, no seu discurso de 23 de setembro deste ano, as Nações Unidas não são apenas um edifício onde se reúnem as nações: são uma bússola moral, uma força para a paz e para a sua manutenção, uma guardiã do direito internacional, um catalisador para o desenvolvimento sustentável e devem ser, cada vez mais, um centro que transforma decisões - as decisões dos Estados-membros - em ação. Este discurso faz eco das palavras do nosso fundador, Padre Jean Gailhac:
“O que dá força e solidez a um edifício é o cimento que, de uma grande quantidade de pedras, forma como que um único bloco. O que faz a força e o poder de uma comunidade é o espírito de Nosso Senhor, reinando em todos e cada um dos seus membros e fazendo deles um único ser. Porque, assim como um edifício - por mais belo e forte que fosse na aparência - cujas pedras estivessem simplesmente colocadas umas sobre as outras sem cimento, não poderia resistir a uma tempestade nem ao menor movimento, assim uma comunidade cujos membros não tivessem o mesmo espírito a uni-los, não seria capaz de resistir à menor prova, muito menos fazer o bem e procurar a glória de Deus.” GS/17/1/83/B/
Mais uma vez, ao longo da sua história, a ONU enfrenta um grande desafio: o de manter a sua relevância e eficácia num mundo cada vez mais fragmentado. A fé cristã convida-nos a não desistir da esperança, mas a promover a paz e o diálogo. O trabalho da ONU, embora com falhas, continua a ser um instrumento vital para mediar conflitos, proteger os mais vulneráveis e promover soluções globais que façam do nosso mundo um mundo melhor. Que possa contribuir, com maior generosidade e esperança, para que “todos tenham vida”.
Vítor Sá Dias
Professor





















