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DE NÓS PARA OS OUTROS. A SOLIDARIEDADE DAS PROFISSÕES E VOCAÇÕES.

Enquanto me preparava para escrever estas linhas, voltei a um velho amigo, estacionado há talvez demasiado tempo na estante: Cartas a um Cristão Inquieto de Paul Valadier.

O mote do segundo capítulo cumpre logo a inquietação do título e deixa-nos a pensar: “Originalidade Cristã”. Para o autor, antes de tudo, o Cristianismo é original porque se cumpre a fazer a mais árdua e reflexiva tarefa que se podia pedir: ser coerente com uma linha desenhada por si e para si.

Porém, esta auto-orientação não deve ser nem um exercício estanque nem uma tarefa unicamente para as estruturas do Vaticano – como diz Valadier, obriga uma reflexão constante no presente, em vez do passado, e com a mais simples e pura de todas as vontades: a de ajudar, amar e servir o próximo.

A conclusão não é nova, mas revisito-a aqui como ponto de partida para repensar o valor do trabalho dentro da lógica cristã, sob a égide de uma metáfora que me parece essencial sublinhar nos tempos que correm: a de um triângulo.

Triângulo, acima de tudo, porque é símbolo de equilíbrio e de continuidade.

Não apenas porque as nossas vidas laborais ocupam grande parte dos nossos anos de vida, mas principalmente porque as missões de cada um de nós – seja a de professor, médico, industrial, advogado, administrativo, jornalista, polícia ou outras tantas – não se esgotam no nosso horário de trabalho. Prolongam-se, antes, pela nossa vida cívica em três pontos essenciais – e daí o triângulo.

O primeiro deles é o serviço ao outro, ponto crucial por onde abrimos este texto. Contudo, proponho aqui uma ótica diferente. Não raras vezes olhamos para a ajuda ao próximo sob uma perspetiva individual – escusamo-nos, até, de auxiliar outros porque já ajudámos um “e não podemos ajudar todos”. Podemos e devemos – “que vos todos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo, 15: 12). A tarefa também não é difícil, se olharmos para a realidade à nossa volta, soubermos ler os sinais da atualidade apressada e percebermos que a dedicação à nossa vocação e ofício é também um serviço aos outros, mesmo que não tenha um destinatário concreto ou particular. É certo que é um ato de confiança, este de servir para algo quase invisível ou pouco materializado, como a sociedade ou o bem-comum – mas não são os atos de confiança também basilares na relação com Deus?

Não tenhamos medo de expandir a nossa noção de solidariedade.

E vermos em cada detalhe – numa aula que damos, num telefone que atendemos, num artigo que escrevemos ou numa consulta que fazemos – um contributo pequeno, mas importante, para manter o equilíbrio social. Ter uma profissão em que encontramos o propósito para a sociedade não é a realidade natural das coisas, nem tampouco é algo garantido. É sim prova de que o sistema democrático que temos, por muitos defeitos que lhe possam ser apontados, é o mais funcional em comparação com todos os outros – nem que seja por termos a liberdade de amanhã sentirmos que a nossa vocação está noutro lado, fazermos a mala e partirmos de novo à descoberta de como podemos ajudar o nosso próximo.

Esta liberdade não é, todavia, fácil de pôr em prática. Exige, antes de tudo, um processo de autoconhecimento nem sempre fácil, entre a espuma dos dias – é este o segundo vértice do triângulo.

Longe vão os tempos em que o trabalho teria de ser algo maçudo ou uma mera obrigação para conseguir sobreviver. Porém, e apesar de hoje exigirmos que as nossas profissões nos deem gozo, raramente paramos para pensar: “gosto do que faço, mas o meu espírito gosta do que isto me dá?”. A pergunta parece redundante, mas não é: é uma questão de perspetiva.

Quando falamos de espiritualidade e vocação, mudamos o foco do curto para o longo prazo.

E desengane-se quem acha que esta é uma perspetiva individualista ou utilitarista da vocação. Dizia-nos o nosso fundador, padre Jean Gailhac: “Quem não é bom para si, não pode sê-lo para os outros”.

Este trabalho de autoconhecimento a pensar no próximo exige, ainda assim, tempo e calma para serenar – e em qualquer altura da vida. Cada vez há mais jovens a optar por um ano de pausa – o chamado gap year – entre duas diferentes etapas de vida, seja na passagem para a universidade ou na entrada para o mercado de trabalho. Há também quem depois de anos a fio dedicados à vida profissional decida gozar um tempo sabático.
Estes exercícios não são sinónimo de ócio ou preguiça. O descanso físico e mental – o terceiro e último ponto do triângulo que destaca o valor do trabalho – pode ser catalisador de vivacidade espiritual e de um caminho longo, mas nunca adormecido, de reencontrar o propósito numa outra vocação que nos ponha – de forma personalizada e original, como falávamos ao início – ao serviço do outro e de todos. Este é, aliás, uma forma de transparência e de justiça para com a sociedade – muito mais nobre do que aqueles que nunca param uma vida inteira, mas sempre de olhos fechados para quem está à sua volta.

No rescaldo do Dia do Trabalhador e na vivência dos 50 anos de democracia em Portugal, não nos esqueçamos daquilo que mais valioso nos trouxeram Abril e Maio: a liberdade de servirmos o próximo, ancorada naquilo que somos e naquilo que escolhemos para nós.

Alexandre Abrantes Neves
Jornalista