Podes parar, escutar as vozes das pessoas e do mundo à tua volta? Ouves o clamor dos mais pobres? E o grito da Terra?
Não é difícil reconhecer: nos ritmos acelerados e conturbados dos nossos dias, tem vindo a emergir um veemente apelo à escuta, como necessidade pessoal, urgente na convivialidade humana e atitude determinante no modo de ser Igreja.
É interessante haver sido instituído o Dia Mundial da Escuta, com vários propósitos, entre eles, encorajar a prática de uma escuta ativa e a apreciação crítica dos sons ambientais escutados. De outros ângulos e com outra finalidade, a psicologia e a espiritualidade promovem a escuta atenta e ativa como atitude fundamental para a relação empática e o serviço de ajuda interpessoal. Na Igreja católica, fomos encorajados a desenvolver processos contínuos de escuta e diálogo, a escutar vozes diversas e menos habituais, como condição para o caminho sinodal.
Em convergência com este movimento eclesial e da sociedade, decorre o Capítulo Geral do nosso Instituto, durante o mês de julho.
Um tempo privilegiado para, em comunidade internacional, exercitarmos a escuta e o discernimento comunitário dos apelos de Deus. Delegadas de diferentes culturas, idades e experiências de vida, convidadas a libertar-se de ideias pré-elaboradas, da pretensão de argumentar e convencer - um despojamento necessário para quem deseja estar disponível, com liberdade de coração, para a escuta profunda da manifestação do Espírito de Deus em cada uma e em todas. Escutar Deus nos nossos corações, na Sagrada Escritura, na Igreja, nas pessoas e acontecimentos, nas realidades dos nossos contemporâneos, no mundo que partilhamos e servimos.
Assim evoluímos juntas na leitura de fé dos sinais do nosso tempo, dos apelos e movimentos previsíveis para o futuro próximo, enquanto Deus fortalece a nossa Unidade e nos conduz a decisões de renovação.
O nosso legado de escuta
Exercitada nos nossos Capítulos, a atitude de escuta e diálogo com a realidade é, sobretudo, um traço forte da nossa espiritualidade e tradição. No passado como no presente, é um dinamismo vivo do nosso legado, sempre de mãos dadas com a adaptação aos sinais dos tempos, transformação e fidelidade criativa.
Como não recordar os tempos pós-concílio, os processos de receção e implementação do Vaticano II, as mudanças radicais na nossa forma de viver a vida religiosa e redefinição das respostas apostólicas do Instituto? É evidente o impacto deste processo transformador ao longo do tempo, incluindo o compromisso com a justiça evangélica que, desde então, marca as nossas opções preferenciais.
Em Portugal, sendo abundantes os exemplos, fica na história o processo de escuta e diálogo com a realidade vivido na época da Revolução de abril e anos que se sucederam. Um movimento de adaptação discernida, de transformação de obras apostólicas existentes e fundação de novas respostas, no contexto da nova organização social e política.
Numa memória mais recente, o tempo da pandemia, a interdependência global, a insegurança e vulnerabilidade coletiva, … sinais que reclamaram solidariedade, colaboração, partilha de saberes e de recursos, enquanto valores essenciais para a sobrevivência e a construção da Comunidade Humana como “um NÓS”. Neste contexto de caos, vimos irromper, na sociedade e no nosso Instituto, a energia criativa para a superação, a rapidez de adaptação, ensaios e novas respostas, determinantes na área da saúde e da educação, entre outras.
A urgência da escuta
No tempo presente, a tecnologia avançada e os sistemas de Inteligência Artificial (IA) estão aí, com sinais que fascinam, outros que amedrontam e, acima de tudo, nos convocam para a reflexão e discernimento – como poderemos usar e ensinar a usar este recurso extraordinário, de forma livre e emancipada? Sem se deixar vincular, sem diminuir a exercitação cognitiva e a responsabilidade ética, sem delegar a capacidade emocional, o exercício crítico e criativo, específicos da inteligência humana. Saberemos usar o potencial da IA sem delegar a nossa humanidade e a favor das causas da Comunidade Humana?
Somos avassalados por guerras, dramas humanitários e destruição do nosso mundo. Como superar a resignação? “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, exorta Sophia M. Breyner. Das fontes bíblicas, ecoa a manifestação do coração de Deus diante do sofrimento das pessoas e a Sua forma de intervir: “Tenho visto a opressão e a miséria do meu povo, escutado o seu clamor, …Eu te enviarei” (cf Ex 3,7). A escuta dos sem voz e mais vulneráveis associa-se à visão - é preciso ver e deixar-se tocar pelos seus dramas, reconhecer os sinais do Senhor Ressuscitado e escutar o Seu apelo.
Como Instituto, somos impelidos pelo Espírito a escutar o pulsar do Coração de Cristo a partir das margens, as vítimas de injustiça, os mais pobres e fragilizados, o grito da terra …”(Cap. Geral 2019). O Evangelho de Jesus Cristo e o nosso espírito de Fé e Zelo impelem-nos a vencer a resignação e ousarmos semear Esperança, em parceria com outros, avançando com respostas promotoras de vida, enquanto ecoa no nosso coração a voz de Gailhac: “Cuidem bem de todas as pessoas”. Assim Deus nos conduziu da escuta à decisão e implementação do novo projeto na cidade de Lisboa – UT VITAM A CASA. Conscientes da nossa pequenez, confiantes em Deus e no dom da colaboração.
Assim nos inspira Maria, a pobre de Javé, com quem aprendemos a escutar, acolher e ponderar no coração. Também ela nos ensina que “não vemos com os olhos, mas através dos olhos, não escutamos com os ouvidos, mas através deles; vemos e escutamos com o coração”. (cf Ortega e Gasset)
Escutamos. Para que todos tenham Vida!
Ir. M.ª Teresa Nogueira, rscm